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Demurrage de contêineres – A licitude e viabilidade do procedimento de cobrança à vista da demurrage

Não restam dúvidas de que hoje o principal instrumento de movimentação de cargas, por via marítima, é o contêiner.

Todavia, seu uso deve ser restrito, de forma que não atrapalhe a atividade comercial do armador, evitando o uso do cofre como um pequeno armazém. Consequência disso, foi de extrema necessidade a implantação de um período para uso da unidade de carga e, por razões óbvias, uma indenização para aquele que não cumprisse o prazo concedido.

Essa indenização é um valor ajustado pelos players do transporte, com natureza jurídica pré-indenizatória e há tempos era cobrada a prazo, gerando um histórico de grande evidência de inadimplência, provocando o armador a recorrer ao Poder Judiciário, repercutindo um alvoroço burocrático desnecessário.

O modelo hoje praticado por um único armador no Brasil não é novidade no exterior e, ao contrário do que muito foi dito, não há nenhuma ilegalidade ou ilicitude para a cobrança à vista da demurrage.

Da mesma forma que o valor e a franquia da demurrage são negociados e de ciência dos players do transporte, assim é a cobrança à vista, inclusive detalhada em termo e condições de uso do contêiner que é indissociável ao Conhecimento Marítimo.

“[…] O conhecimento de embarque nada mais é do que um contrato e se as partes contrataram dessa forma, nada podem reclamar, até porque, no seu anverso há cláusula específica prevendo a cobrança da multa relativa à sobreestadia, bem como cláusula responsabilizando o comerciante:[..] 3. INCORPORAÇÃO DE TARIFA – Os termos das tarifas aplicáveis do Transportador são aqui incorporados. Particular atenção é dada aos termos aqui relacionados com a sobreestadia do container e sobrestadia de veículos (…). Pela leitura da aludida cláusula 3, acima transcrita, que expressamente prevê a cobrança da sobreestadia, em conjunto com os documentos de fls. 42/43, que também de maneira expressa, preveem prazo livre de 10 (dez) dias e na ‘tabela anexa’ (Tarifas Demurrage Brasil),estão os respectivos valores; não resta dúvida acerca da impossibilidade da recorrente de se eximir da responsabilidade pelo pagamento das taxas de sobrestadia ou ‘demurrage’, não havendo, portanto erro na fundamento da r. sentença guerreada.

(TJSP – 24.ª Câmara de Direito Privado – Apelação Cível 7031147-8 – Rel. Des. Roberto Nussinkis MacCracken – Deram provimento parcial, v.u. – j. 17.08.2006)

Ademais, se assim não fosse, o artigo 331 do Código Civil dá total guarida legal a prática narrada. Vejamos:

Art. 331. Salvo disposição legal em contrário, não tendo sido ajustada época para o pagamento, pode o credor exigi-lo imediatamente.

O Bill of Lading evidencia o que foi contratado e que as partes que o compõem contrataram dessa forma, nada tem nada a reclamar posteriormente. É preciso grifar que a relação contratual em comento se dá entre partes totalmente conhecedoras dos trâmites e praxes do transporte marítimo, de tal forma que chega a ser inusitado alegar desconhecimento dos documentos e cláusulas nele previstas.

Nesta linha de raciocínio, essencial que se observe o que prevê o parágrafo único do artigo 421 do Código Civil, com relação ao princípio da intervenção mínima e excepcionalidade da revisão contratual.

Art. 421.  […].

Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual.

No universo das relações empresariais, sequer deveria se cogitar ação judicial para imposição de obrigações contratuais, pois se a parte contratante anui e aceita os termos do Conhecimento Marítimo, não há margem que lhe permita impugná-lo mormente quando se torna inadimplente.

Se, por exemplo, a consignatária compreende que não tem aptidão para a prática, que negocie e faça constar no contrato de transporte marítimo que a cobrança será, excepcionalmente, a prazo.

Na realidade o procedimento de cobrança à vista é simples, todavia, por razões lógicas os devedores encontram e criam óbices para que essa cobrança não ocorra, vejamos posições de renomados desembargadores a respeito do assunto:

Defiro o efeito suspensivo pleiteado pelo agravante, porquanto a documentação apresentada nessa oportunidade demonstrou, inequivocamente, que ausentes a verossimilhança das alegações e o fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação invocados pela agravada em sua exordial, a fortiori porque não se trata de relação de consumo stricto sensu, sendo de prevalecer a máxima pacta sunt servanda, com cobrança à vista/imediata pela Agravante ex vi do conhecimento marítimo e do artigo 331 do Código Civil.

(AI 2280321-09.2020.8.26.0000 – TJSP 03/12/2020 – Des Rel Décio Rodrigues)

De todo modo, caberá à GAC, concomitantemente, efetuar o pagamento do débito pelo atraso na devolução dos containers e, com a indicação do local, devolver os baús ao verdadeiro dono. Não cabe à devedora condicionar a devolução da coisa à sua maneira. Cabe-lhe pagar, primeiro, e devolver, depois, no local a ser indicado.

(AI 2079584-87.2020.8.26.0000 – TJSP 26/10/2020 – Desembargador Relator Virgilio de Oliveira Junior, v.u.) (grifo nosso)

Explanados temas cruciais sobre o assunto, necessário abordar o formato do procedimento. Por óbvio não seria possível praticar a cobrança à vista que conhecemos no nosso dia a dia, entrega do dinheiro e entrega da coisa em momento simultâneo, por essa razão houve um estudo envolvendo possibilidades e permissivos legais e assim, foi planejado uma “troca” de agendamentos, permitindo inclusive que o pagamento não seja exatamente à vista, mas até 24 horas após a devolução da unidade de carga.

Uma vez excedido o período de free time, o consignatário envia uma mensagem eletrônica ao armador agendando uma data para a devolução do contêiner, ato posterior o armador calcula o quanto é devido a título de sobrestadia, tornando líquida a quantia e envia a fatura ao consignatário da carga. Nesse passo lhe é exigido o agendamento do pagamento da demurrage para até depois  de 24 horas da efetiva entrega.

Importante observar que a partir do término do período de free time a demurrage já é devida, valendo doravante o princípio “once on demurrage, always on demurrage”. O que torna a cobrança da sobrestadia na modalidade à vista plenamente lícita.

Vejamos ainda que não há recusa por parte do transportador em receber o contêiner de volta e muito menos cobrança prévia da demurrage. O que há na verdade é uma distorção dos fatos por devedores inescrupulosos que tendem a todo tempo desvirtuar o que foi contratado.

O cenário real é que há desídia por duas vezes pelo consignatário da carga, a primeira ao não devolver o contêiner no período da franquia e a segunda ao discordar em realizar procedimento que no início não lhe gerou qualquer descômodo.

Fácil é verificar que o transportador condicionou a devolução do contêiner tão somente ao agendamento do pagamento da sobrestadia nas hipóteses em que a demurrage já é devida, ou seja, quando já ultrapassado o período de free time e não devolvida a unidade de carga.

A controvérsia quanto à possibilidade da cobrança à vista é de simples resolução, pois encontra respaldo contratual nas cláusulas do Bill of Lading ao qual anuiu o consignatário da carga, ao passo que o respaldo legal é dado pelos artigos 331 e 421, parágrafo único, ambos do Código Civil, somando-se a isso a total inexistência de proibição a tal prática no sistema jurídico, o que legitima a cobrança na modalidade à vista.

Como sabiamente dito pelo Ilustre Magistrado da 4ª Vara Cível da Comarca de Santos, Dr. Frederico Messias, “a ação judicial está a serviço do não cumprimento da obrigação. É preciso um novo olhar a partir da ideia de boa-fé objetiva, reveladora de standards positivos de conduta na relação contratual (antes, durante e depois), bem como, a partir da vedação ao exercício abusivo do direito de ação com o fim de perpetuar a inadimplência”.

O que se nota em muitos casos são devedores que acionam o Poder Judiciário para perpetuar a sua inadimplência, pois o procedimento da cobrança à vista da demurrage possibilita o pagamento do valor devido de forma imediata, sem a incidência de demais encargos.

Como muito bem explanado em recentíssima decisão da 23ª Câmara de Direito Privado do Estado de São Paulo “aquele que ao portar os contêineres, tornando-se parte legítima para pleitear a sua devolução, dever inteirar-se das condições em que se dá a sua utilização, as quais constaram do conhecimento de transporte”.

O atraso na devolução também expõe o transportador ao risco de cancelamento de negócios pela falta de contêineres disponíveis no porto de origem, caso não seja possível a reposição em tempo hábil e, nesse limiar, é preciso analisar com cautela o princípio da mitigação do dano, usado comumente em defesas contra a cobrança à vista da demurrage.

É preciso notar que a ideia da mitigação do dano não pode significar a transferência do dano em desfavor de apenas uma das partes, a quebrar a lógica da boa-fé que impõe ao devedor cumprir com as obrigações que regularmente assume.

Não há violação da boa-fé e nem mesmo um ato de má-fé por parte do credor, na qual teria por fim provocar indevidamente um aumento significativo do encargo de seu devedor, pois o valor devido se deu exatamente porque o consignatário não cumpriu o contratado em entregar o container no prazo da franquia.

Evidentemente, o dever geral de mitigar o próprio prejuízo não é absoluto, nem exige que a parte lesada pelo inadimplemento adote toda e qualquer medida abstratamente capaz de reduzir os danos sofridos. Nesse sentido, o STJ vem reconhecendo que o credor não está obrigado a se prejudicar tentando reduzir seus prejuízos, nem a agir contrariamente à sua atividade empresarial. No caso concreto, receber os cofres de carga inviabiliza a cobrança à vista.

No mais, a insatisfação do consignatário da carga com a modalidade de cobrança da qual já tinha conhecimento, não inibe a mora gerada por desídia da própria parte.

Não é demais lembrar que a própria ANTAQ determina de forma clara quando se encerra a responsabilidade do consignatário pela demurrage (Resolução Normativo 62 – 29/11/2021):

Artigo 21 – A responsabilidade do usuário, embarcador ou consignatário pela sobre-estadia termina no momento da devida entrada do contêiner cheio na instalação portuária de embarque, ou com a devolução do contêiner vazio no local acordado, no estado em que o recebeu, salvo deteriorações naturais pelo uso regular.

É preciso notar que o armador em momento algum recusa o recebimento do contêiner ou ainda impõe pagamento prévio ou adiantado, isso inexiste. O que é exigido é o agendamento do pagamento para momento posterior à devolução da unidade, pagamento de valor incontroversamente devido, do qual o consignatário tinha conhecimento de que seria cobrado se ultrapassado free time.

Alguns trechos do Acórdão proferido nos autos a Apelação Cível 1005951-86.2021.8.26.0562 pela 23ª Câmara de Direito Privado do TJSP em 26/04/2023 são de grande valia para melhor compreensão da licitude do procedimento:

Ação de obrigação de fazer c.c. indenização por danos materiais – Transporte marítimo – Suposta recusa da ré em receber os contêineres vazios antes do pagamento do valor relativo às sobrestadias – Sentença de procedência da ação –  Pedido de reforma – Cabimento – Alegado condicionamento do recebimento dos contêineres ao prévio pagamento das sobrestadias não demonstrado – Sistema da ré que exige, para que o portador do contêiner agende a sua devolução, o comprovante de agendamento do pagamento das sobrestadias, com vencimento para até 24h da efetiva devolução da unidade de carga – Prática que não se confunde com a negativa de recebimento dos contêineres sem o prévio pagamento das sobrestadias – Contraprestação relativa à sobrestadia de contêiner que é devida, sempre que escoado o período de “free time” – Exigência da ré que tem amparo no art. 331 do CC – Autora que não fez pedido expresso acerca de eventual inexigibilidade do valor relativo às sobrestadias, nem negou ter excedido o “free time” vigente para os contêineres que estavam em sua posse Autora que se limitou a afirmar que, de sua parte, não houve pacto acerca do “free time” e dos termos da cobrança – Irrelevância na hipótese vertente – Autora que, ao portar os contêineres, tornando-se parte legítima para pleitear a sua devolução, deve inteirar-se das condições em que se dá a sua utilização, as quais constaram do conhecimento de transporte – Desnecessidade de ajuste expresso para se exigir a contraprestação pela sobrestadia de contêineres – Contratos de transporte marítimo que revelam forte influência dos usos e costumes da região que são entabulados – Recusa da ré em proceder ao agendamento da devolução do contêiner nos termos pretendidos pela autora que não se revelou ilegítima – Pedido obrigacional da autora rejeitado – Ressarcimento dos valores despendidos pela autora com o armazenamento dos contêineres em terminal privado Descabimento – Recusa da ré em proceder ao agendamento da devolução dos contêineres sem que a autora agendasse o pagamento das sobrestadias que não se mostrou ilícita – Despesas com o armazenamento dos contêineres em terminal privado que, nesse contexto, decorreu de escolha da própria autora que deve custeá-las – Pleito indenizatório que não pode prevalecer – Sentença Reformada – Decretada a improcedência da ação – Apelo da ré provido, com observação.

Esse acórdão demonstra que o Poder Judiciário está atento às práticas atuais do mercado e a tendência é que a modalidade de cobrança à vista da demurrage venha a se consolidar entre os transportadores dada a sua simplicidade, legalidade e efetividade, tanto no cumprimento das obrigações quanto no próprio recebimento dos valores devidos.

Não há lei ou tese que obrigue ou proíba o armador a adotar a prática da cobrança à vista. Entretanto, o que foi estipulado contratualmente deve ser respeitado.

Além disso, a desídia inicial em não cumprir o período free time não dá ao consignatário da carga o direito de exigir qual será sua forma de cobrança ou mesmo impor a sua maneira em cumprir a obrigação, ficando numa posição mais favorável que a do próprio credor e nesse sentido, é válido novamente mencionar o Ilustre Juiz da 4ª Vara Cível de Santos, Dr. Frederico Messias, que em recente sentença recitou:

“No cotidiano forense, assiste-se a perpetuação da inadimplência das obrigações, no mais das vezes, valendo-se o devedor de ações judiciais habilmente manejadas para esse fim, colocando ele, devedor, na posição de soberano no reino da inadimplência, restando ao credor ser mero súdito.”

Não há erro e nem mesmo qualquer ilicitude que impeça a cobrança da demurrage na modalidade à vista, o que certamente há são devedores que se acostumaram comodamente com a cobrança a prazo da sobrestadia, realizando o pagamento meses ou anos após a sua ocorrência, ou quando melhor lhes aprouver.

Ser contra a cobrança à vista é beneficiar o mau pagador e ainda ignorar o contrato firmado entre as partes e a lei vigente.

Epa! Vimos que você copiou o texto. Sem problemas, desde que cite o link: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-maritimas/386648/demurrage-de-conteineres

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